“Muitas pessoas faliram por ter investido maciçamente na prosa da vida.

É uma honra arruinar-se por causa da poesia.”

Oscar Wilde

quinta-feira, abril 26, 2012

Raimundo Nonato (Parte V)


— Cuidei de seu rebanho, Assis — diz consumindo um gole.
— De meu rebanho? Está louco!
— Não fale assim comigo, que lhe fui fiel. Ingrato!
— Cale-se e dá-me um trago!
— Não lhe dou nada enquanto não se desculpar!
— Desculpar-me? Ora, por qual motivo?
— Ofendeu-me, logo a mim, que lhe fui fiel, como pôde?
— E quando o ofendi, pode dizer-me? Dá-me um trago.
— Como ousa dizer que não cuidei de seu rebanho? Fui o melhor pastor que você já teve um dia e fui o melhor porque o fiz por devoção.
— E quando o acusei do contrário? O que tem dentro desse frasco? Dá-me um gole!
— Tenho o mundo!
— O quê?
— Tenho o mundo, ora.
— E como há colocado todo o mundo nesse recipiente tão limitado? Acho improvável.
— Deixe-me em paz!
— É um mentiroso, logo vi.
— Cale-se, não quero mais continuar essa conversa — disse sorvendo outro gole, secando aos lábios com o guardanapo que trazia no bolso de seu blazer.
— Está bem, mudemos então o rumo da prosa, sobre o que quer falar?
— Com você, nesse exato momento, sobre nada. Deixa-me em paz!

Após alguns minutos subindo e descendo pelas ruas da baixa Bela Vista, em silêncio, para e encara uma árvore de copa mediana, permanece por alguns momentos fitando-a, ao que vê um casal de joões-de-barro de dorsos vermelho-terra pousados em um galho, tenta estimular o canto dos pássaros, como que chamando a um cachorro, o que faz com que o casal apresente um curto dueto antes de retomar o voo. Continuando em sua rota sinuosa, chega a um casebre simples, cuja construção deve datar de meados dos anos trinta e tem sua fachada desgastada pelo tempo, implorando por melhorias, sua mureta baixa adornada por um discreto jardim repleto de galhos secos e grama escassa e um pequeno, todavia distinto, apesar dos sinais de ferrugem, portão de ferro com rosas de aço em sua parte inferior na extremidade direita da mureta. Ao transpassar o portão, há um caminho formado por três pedras que dão acesso à pequena varanda, que antecede a porta de entrada centralmente disposta na parede frontal, amparada por um par de janelas laterais protegidas com grades, onde está uma solitária cadeira com estrutura de metal e apoios em tiras cilíndricas de plástico colorido, típicas do interior do estado, onde Raimundo senta-se com seus sonhos, resmungando algo indecifrável.

— Não entendo o que está falando.
— Não estou falando com você! E sim cá com meus botões.
— Deixe de bobeira, sabe que tem apenas a mim como companhia. Façamos as pazes, o que acha?
— Por que pensa que tenho apenas a ti como amigo? Tenho muitos, para seu governo, tenho inclusive uma namorada!
— Dessa eu não sabia!
— Seu problema é achar que sabe tudo a meu respeito, como penso, como vivo, com quem me relaciono ou deixo de fazê-lo. Você é parte apenas, não se esqueça.
— E quem é a dama misteriosa a quem chama de namorada?
— Não lhe interessa. Saiba, pois, que lhe comprarei, inclusive, um belo presente, pois fará anos.
— E quantos ela tem?
— Quantos o quê? Namorados? Apenas um, obviamente.
— Quantos anos, palerma!
— Ah!! Não sei, você sabe bem como são as mulheres, cheias de segredos com alguns números que para nós, homens, não fazem nenhum sentido.
— Bem sei! E como vocês se conheceram?
—Não me lembro ao certo, ultimamente algumas lembranças estão embaralhadas em mim, mas de fato namoramos, até já li um poema para ela, sabe, eu adoro a poesia, pois está presente em tudo, na dor, na alegria, no amor, no ódio, no dia, na noite, no sol, na chuva… para lê-la, precisa-se apenas ter os olhos certos de cada momento.
— E pressuponho que você tenha esses olhos…
— É claro, até parece que não estava comigo quando aquele casal há pouco nos declamou seus versos estridentes.
— Que casal? De pássaros?
—De fato você não tem os olhos necessários, Assis. Diga-me, como você enxerga o mundo?
— Enxergo-o como é, oras, comigo as coisas são preto no branco, não fico por aí divagando sobre a vida ou sobre o amor e coisas sem nexo. A vida é curta e não vou desperdiçá-la com filosofias insignificantes embaladas em vidro e enrolhadas por dúvidas.
— Será que você a vive de fato? Bom, chega de papo que está na hora do almoço e estou ficando faminto — diz levantando-se com certa dificuldade da confortável, apesar de simples, cadeira em direção à porta principal. Procura pela pequena chave apalpando seu bolso direito, contudo não a encontra. Para, pensa por alguns instantes e, com a satisfação do esportista que melhora sua marca após exaustivas jornadas, retira-a do bolso interno de seu casaco, comentando com certo sarcasmo e orgulho de seu feito:
— Aposto que achou que eu não sabia onde ela estava, não é?
Entretanto Assis já não estava ali, e sua pergunta permaneceu sem resposta, assim como seu feito, sem plateia.

...

Continua...

Eduardo Candido Gomes

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