— Cuidei de seu rebanho, Assis —
diz consumindo um gole.
— De meu rebanho? Está louco!
— Não fale assim comigo, que lhe
fui fiel. Ingrato!
— Cale-se e dá-me um trago!
— Não lhe dou nada enquanto não
se desculpar!
— Desculpar-me? Ora, por qual
motivo?
— Ofendeu-me, logo a mim, que
lhe fui fiel, como pôde?
— E quando o ofendi, pode
dizer-me? Dá-me um trago.
— Como ousa dizer que não cuidei
de seu rebanho? Fui o melhor pastor que você já teve um dia e fui o melhor porque
o fiz por devoção.
— E quando o acusei do
contrário? O que tem dentro desse frasco? Dá-me um gole!
— Tenho o mundo!
— O quê?
— Tenho o mundo, ora.
— E como há colocado todo o
mundo nesse recipiente tão limitado? Acho improvável.
— Deixe-me em paz!
— É um mentiroso, logo vi.
— Cale-se, não quero mais
continuar essa conversa — disse sorvendo outro gole, secando aos lábios com o
guardanapo que trazia no bolso de seu blazer.
— Está bem, mudemos então o rumo
da prosa, sobre o que quer falar?
— Com você, nesse exato momento,
sobre nada. Deixa-me em paz!
Após alguns minutos subindo e
descendo pelas ruas da baixa Bela Vista, em silêncio, para e encara uma árvore
de copa mediana, permanece por alguns momentos fitando-a, ao que vê um casal de
joões-de-barro de dorsos vermelho-terra pousados em um galho, tenta estimular o
canto dos pássaros, como que chamando a um cachorro, o que faz com que o casal
apresente um curto dueto antes de retomar o voo. Continuando em sua rota
sinuosa, chega a um casebre simples, cuja construção deve datar de meados dos
anos trinta e tem sua fachada desgastada pelo tempo, implorando por melhorias,
sua mureta baixa adornada por um discreto jardim repleto de galhos secos e
grama escassa e um pequeno, todavia distinto, apesar dos sinais de ferrugem,
portão de ferro com rosas de aço em sua parte inferior na extremidade direita
da mureta. Ao transpassar o portão, há um caminho formado por três pedras que
dão acesso à pequena varanda, que antecede a porta de entrada centralmente
disposta na parede frontal, amparada por um par de janelas laterais protegidas
com grades, onde está uma solitária cadeira com estrutura de metal e apoios em
tiras cilíndricas de plástico colorido, típicas do interior do estado, onde
Raimundo senta-se com seus sonhos, resmungando algo indecifrável.
— Não entendo o que está
falando.
— Não estou falando com você! E
sim cá com meus botões.
— Deixe de bobeira, sabe que tem
apenas a mim como companhia. Façamos as pazes, o que acha?
— Por que pensa que tenho apenas
a ti como amigo? Tenho muitos, para seu governo, tenho inclusive uma namorada!
— Dessa eu não sabia!
— Seu problema é achar que sabe
tudo a meu respeito, como penso, como vivo, com quem me relaciono ou deixo de
fazê-lo. Você é parte apenas, não se esqueça.
— E quem é a dama misteriosa a
quem chama de namorada?
— Não lhe interessa. Saiba,
pois, que lhe comprarei, inclusive, um belo presente, pois fará anos.
— E quantos ela tem?
— Quantos o quê? Namorados?
Apenas um, obviamente.
— Quantos anos, palerma!
— Ah!! Não sei, você sabe bem
como são as mulheres, cheias de segredos com alguns números que para nós,
homens, não fazem nenhum sentido.
— Bem sei! E como vocês se
conheceram?
—Não me lembro ao certo,
ultimamente algumas lembranças estão embaralhadas em mim, mas de fato
namoramos, até já li um poema para ela, sabe, eu adoro a poesia, pois está
presente em tudo, na dor, na alegria, no amor, no ódio, no dia, na noite, no
sol, na chuva… para lê-la, precisa-se apenas ter os olhos certos de cada
momento.
— E pressuponho que você tenha
esses olhos…
— É claro, até parece que não
estava comigo quando aquele casal há pouco nos declamou seus versos
estridentes.
— Que casal? De pássaros?
—De fato você não tem os olhos
necessários, Assis. Diga-me, como você enxerga o mundo?
— Enxergo-o como é, oras, comigo
as coisas são preto no branco, não fico por aí divagando sobre a vida ou sobre
o amor e coisas sem nexo. A vida é curta e não vou desperdiçá-la com filosofias
insignificantes embaladas em vidro e enrolhadas por dúvidas.
— Será que você a vive de fato?
Bom, chega de papo que está na hora do almoço e estou ficando faminto — diz
levantando-se com certa dificuldade da confortável, apesar de simples, cadeira
em direção à porta principal. Procura pela pequena chave apalpando seu bolso
direito, contudo não a encontra. Para, pensa por alguns instantes e, com a
satisfação do esportista que melhora sua marca após exaustivas jornadas,
retira-a do bolso interno de seu casaco, comentando com certo sarcasmo e
orgulho de seu feito:
— Aposto que achou que eu não
sabia onde ela estava, não é?
Entretanto Assis já não estava
ali, e sua pergunta permaneceu sem resposta, assim como seu feito, sem plateia.
...
Continua...
Eduardo Candido Gomes