“Muitas pessoas faliram por ter investido maciçamente na prosa da vida.

É uma honra arruinar-se por causa da poesia.”

Oscar Wilde

terça-feira, maio 01, 2012

Raimundo Nonato (Parte VI)


A porta anuncia, com suas cornetas, a chegada daquele que lhe é soberano, abrindo-se, convidativa, à passagem de Raimundo, que, bamba, aceita o gracejo. O acesso é feito à sala de estar, cujo formato quadrado, com os poucos móveis dispostos, dá a impressão de ser ampla, todavia é limitada a uma área deveras discreta. À esquerda, um sofá de dois lugares, em couro bege, com alguns rasgos em ambos os assentos e no encosto próximo à pequena almofada vermelha que repousa em seu braço. Na parede, um pequeno quadro paisagístico retratando um ambiente bucólico típico do campo, em uma moldura lisa, sem trabalhos aparentes. Opondo-se à paisagem, um pequeno televisor — de dar inveja a colecionadores de quinquilharias e faria sucesso nos diversos museus sobre mídia que existem espalhados pelo mundo — sobre um caixote de madeira, cujas antenas espreguiçadas abraçam, ou são abraçadas, por novelos de palhas de aço em suas extremidades; a seu lado, uma mesinha geralmente utilizada como apoio para aparelhos telefônicos, ocupada por um vaso cuja flor solitária já apresenta sinais de envelhecimento. Disposto centralmente entre o aparelho e o assento, um pequeno tapete, trabalhado com retângulos multicoloridos, tons de marrom, cujas colorações o camuflam com o assoalho de madeira. Raimundo cerra a porta, colocando a chave sobre a mesinha e transpassa o ambiente em direção à cozinha, que, igualmente à sala, limita-se a um espaço bastante reduzindo, coloca os itens que trazia consigo sobre a pequena mesa circular e abre o forno do fogão retirando um pacote de pães; senta-se à mesa servindo-se com dois dedos de café preto que restavam na garrafa térmica que repousava sobre o móvel.

— Ué, e eu? Não bebo nada?
— Pegue um copo no armário e dividamos este que é todo o café que temos.
— Mas não quero café, quero chá, um chá inglês!
— Ingleses, geralmente, tomam chá com leite e também não temos mais leite. Sirva-se de um gole do meu próprio copo.
— Não, obrigado! Para comer, o que temos?
— Pães!
— Humm, eu adoro pãezinhos frescos e ainda quentes, com um fio de manteiga então, tornam-se fenomenais!
— Infelizmente eles estão aqui há alguns dias, como pouco e para mim são suficientes.
— Pães velhos? O que há com você? Onde estão seus modos? Exijo ser tratado com o mínimo de respeito e dignidade! Era o que me faltava! Perdi o apetite.
— Ok, comê-los-ei sozinho; comê-los-ei com a vontade do apaixonado que saboreia os segundos em presença do amor, com a vontade que faz desabrochar, na lânguida criança faminta, o sorriso puro da tenra infância, com a vontade que move homens de paz em tempos de guerra, com a vontade que germina a semente ao ser beijada pela gota de prata apartada dos céus de verão; comê-los-ei com a vontade e o prazer que nutro pela vida e por sonhos ainda não reais.
— Não entendo!
— O quê?
— Como pode falar tanto, e não dizer nada? Essa sua mania de falar coisas sem sentido, esse seu conformismo com a vida e com os rumos que ela nos fez seguir, veredas áridas e empoeiradas, sem horizontes definidos, veja aonde chegamos, veja até onde descemos, vivo, por si, as angústias que parecem não lhe afligir. Não sente saudade de sua vida pretérita? De todas aquelas experiências acumuladas, de todas aquelas pessoas à sua volta, das milhas percorridas, dos cálices de prata? Não sente saudade de ser quem foi?
— Sou quem fui, Assis, contudo, sou agora uma versão complexa daquele de outrora. Hoje conheço, de fato, aqueles que me dedicam vida, conheço-os em seu radical, assim como eles me conhecem, sei de suas fidelidades cruas e lhes sou fiel à mesma maneira; as condições materiais talvez sejam distintas, mas as verdades das pessoas também são, sem dúvida, divergentes das infidelidades condescendentes de tempos atrás. Pergunta-me se não sinto saudade e digo-lhe não, não a sinto, meu caro, pois hoje posso dizer-lhe que conheço de fato a essência do “Bom, do Belo e do Bem” desprovido de tudo que não o genuíno interesse em partilhar. “Sinto que sou tratado como uma flor de lapela, uma peça de decoração para deleitar-lhe a vaidade, um ornamento de um dia de verão.”, e se assim, de fato, me vê, sinto por si!
— Talvez por isso não controle sua Sangria!
— Como ousa querer barrar-me pelos caminhos que tenho que seguir!
— Ah, água é assim mesmo…
— Água, chama meus pensamentos de água?
— Agora parecem pedras!
— Não iguais às do Drummond —redarguiu — quem sabe, talvez, como as de Pessoa, que não construirá castelo nenhum com as pedras que atiram nele.
— Buarque que o diga: Genny, Genny, acorda dessa noite, já é meio-dia.
— Está louco! —diz Raimundo com sua sombra insistentemente.
— Olhe, você é grande, mas não é dois.
E pisa em sua sombra como vencedor da contenda.

Eduardo Candido Gomes

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