O calor estrangeiro de meio de
ano perpetua-se, desvelando um inverno às avessas. Damas-da-noite perfumam a
atmosfera enquanto acendo meu cachimbo para mais uma sessão noturna de
trabalhos literários acompanhado por John Coltrane. Com a porta do escritório
devidamente cerrada, sento-me confortavelmente no sofá de couro preto que ocupa
longitudinalmente o espaço, afrouxo minha gravata enquanto a ventana mantém-se
inviolada, apesar de aberta e convidativa. Meu processo criativo está
imobilizado, continuo pensando nas razões de Raimundo, o cursor oscila
insistentemente intimidando-me. Levanto-me, desviando meus olhos para a rua,
novamente deserta, puxando secamente os aromas de meu tabaco de chocolate,
expelindo-os e sentindo sua mistura com o jasmim já presente.
Os ponteiros registram duas e
dezessete da madrugada quando decido enfrentar minha paralisia criativa,
repouso, então, o cachimbo sobre a mesa, sento-me em minha cadeira e escolho
algumas páginas soltas. “Hoje será no método convencional”, penso alto enquanto
desligo o monitor. Sobre a mesa encontra-se a obra cuja absorção, ainda
inacabada, tem ocupado parcialmente minhas noites, abro-a despretensiosamente e
empeço uma leitura em que a morte faz-se presente de maneira integral, o que
proporciona em mim uma mudança brusca de reflexão, afinal há alguns dias
senti-me cercado por ela…
“A
morte, surda, caminha
ao meu
lado
e eu
não sei em que esquina
ela vai
me beijar…”
O que diria a psicanálise a
respeito de minhas dúvidas, de meus medos? Tenho por mim que morrerei em algum
acidente, sempre tive essa sensação, talvez por algum trauma que desconheça,
fato que me apavora em qualquer deslocamento por terra, água ou ar que tenha de
fazer. Minhas fobias começam a aflorar e as palavras correm em textos poéticos
cujos ritmos lhes são dados por rimas internas e por minha respiração levemente
ofegante. Seria o calor ou o tema o motivo da palpitação? Desconheço. Escrevo
produtivamente por horas e, aos sons dos primeiros bem-te-vis, noto que o dia
começará a nascer em breve e será longo. É engraçado como o nascer do sol e as
colorações dele derivadas no horizonte, assim como a primeira brisa da manhã,
são rejuvenescedores. Organizo os esboços que construí durante a noite e
repouso no sofá por um breve momento antes do início oficial de meu dia. O
silêncio ainda é dominante na cidade que acorda, aos poucos, para mais um ciclo
alucinado.
Desperto assustado com o toque
do telefone que está ao meu lado, atendendo-o com a voz embargada. Era engano.
Distante, ouço alguns gritos cujo timbre acredito reconhecer, levanto ainda,
parcialmente, curvado, trajando a roupa do dia anterior, caminho em direção à
janela e, aqui de cima com o sorriso da certeza em meus lábios, ouço:
— Cuidei de seu rebanho, Assis
— em brado de desgosto com a voz levemente embaralhada e com o dedo em riste
relembrando tempos pretéritos.
“Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os pensamentos
E os pensamentos são todos sensações”
Era novamente Raimundo que
seguia rumo à Alameda Joaquim Eugênio de Lima nos primeiros de muitos passos de
sua peregrinação daquele dia. Olhando aquela cena de discussão, em meio à rua
ainda pouco movimentada por transeuntes, mas já trafegada por alguns veículos,
senti-me um Big Brother observando seus caminhos, conhecendo seus medos, suas
amarguras, suas venturas, seus planos, sem que os tenha, conscientemente,
permitido a mim e aos outros possíveis o acesso lícito a seu meandro interior.
Cerro a janela e recolho-me por mais alguns instantes, deixando-o seguir por
suas escolhas.
...
Continua...
Eduardo Candido Gomes
Acesse www.multifocais.wordpress.com e confira nosso material.
Nenhum comentário:
Postar um comentário