O pôr do sol estarta, camadas
de cores engolem-se a cada segundo. Sento-me para saboreá-lo em um aconchegante
café a céu aberto, momentos ímpares que precedem o início de uma nova noite de
inverno, cujo ambiente, entretanto, lembra-me os melhores dias de verão.
Enquanto aguardo por meu pedido, aprecio os transeuntes e suas fisionomias,
posturas, alguns caminham em duplas ou em trios conversando, sorrindo, contando
seus planos, enquanto outros, mais centrados, amadurecendo ideias, passam como
flechas lançadas para seus próximos compromissos.
Presos
em liberdade!
Tento ler seus pensamentos;
acredito, por enxergar seus olhos, que são, majoritariamente, angustiantes. É
incrível como sobrevivem sem olhar para o céu, sem contemplar as estrelas, sem
notar os beija-flores da vida em seus caminhos.
“Quando o sol se deita,
respira-se à beira dos golfos
o perfume dos limoeiros;
mais tarde, à noite,
nos terraços das vilas,
a sós e com os dedos confundidos,
olham-se as estrelas
e fazem-se projetos”.
Uma delicada senhorita, com voz
suave, de baixa estatura, tez parda, cabelos pretos e presos, olhos grandes
igualmente escuros, em ritmo mecânico e caótico, serve-me uma deliciosa torta
mousse de chocolate meioamargo, acompanhada por um “espresso”, expresso, das fazendas de Ribeirão e
de água gaseificada com duas rodelas de limão siciliano; agradeço-lhe com um
sorriso e começo a degustar, em pequenas porções, aquela iguaria incomparável,
feita com pedacinhos amendoados da Amazônia, todavia, sigo observando à minha
volta. Noto, enquanto bebo um gole de meu café, um casal de turistas que
observa, com ar descontraído, ao cardápio de um restaurante italiano,
folheando-o e sentindo os aromas mediterrânicos a cada página virada. Enquanto
eu ouvia Ecclesiam,
de uma das páginas de Os
bastidores: “As catedrais estão velhas / e as palavras antigas /
não renovam os homens” e a máquina do caixa do restaurante me chamou a atenção
com o seu despertar de “faturei mais um”, penso que seja assim, um caixa com
aquele alarido todo, como quem diz para todos: ele pagou, mais um pagou.
Desabrocham de um poderoso
saxofone, em meio ao turbilhão de carros que passam indo e vindo, ou vindo e
indo, os acordes de Emmenez-Moi,
sinto-me confortavelmente acomodado num dos camarotes do Olympia em plena
América do Sul, percorrendo as lembranças postas à tona pela melodia. Cerro os
olhos e sinto-me regendo-a com a ponta dos dedos, disto de mim, estou ao seu
lado, segurando em sua mão, encantado por seus sorrisos, encantado por seus
gestos, encantado por si; em um medley
incomum, os sopros do artista expelem Cartola, com a paisagem carioca, de nosso
primeiro encontro, despontando em uma renovação de cenários inesperada.É
incrível como nossa essência confunde-se ao ponto de não sabermos onde
começamos e onde terminamos. Volto em meio aos aplausos efusivos ao fim da
apresentação, inebriado por sentimentos únicos.
“Se tu
amas uma flor
que se
acha numa estrela,
é bom,
de noite, olhar o céu.
Todas
as estrelas estarão floridas.”
Após um par de horas, em passos
estudados, enceto meu retorno. So
in Love é a melodia em minha vitrola, e o momento pede o requinte
de Frank com a precisão de Cole, dedilhando vinte e uma notas por segundo em meu
piano. Contemplo o céu florido, criando figuras com as estrelas, fotógrafos
eternizam o Masp de vão despojado, pilares, canteiros e espelhos d’água
banhados em luar, em meio a oscilações de veleiros em berimbaus; avisto
Raimundo, que não mais traja camisas imaginárias de seleções ou clubes, tem, no
entanto, as mangas de seu blazer na altura dos cotovelos com um pedaço de
madeira ostentado em sua mão direita, cantando Detalhes aos quatro ventos, homenageando dessa
feita outro rei. Ao passar por ele, sorrio e obtenho a mesma resposta simpática
de quem continua com seu show particular em público, afinal, sua performance é
para ninguém menos do que ele mesmo.
Invejo-o e sigo meu caminho
metamórfico.
Penso, ao aproximar-me de meu
destino, lembrando-me de outros exemplos pelos quais passei durante a vida, sem
a devida atenção depositada em Raimundo, qual teria sido o momento definitivo
em suas vidas, o momento que os fizeram seguir pelos caminhos que escolheram.
Será que tinham consciência de sua relevância, naquele tempo? Será que sabiam
da importância dos preços a serem pagos? Quero dizer, será que tais preços
pagos foram significativos em seus pontos de vista, ou suas pseudoliberdades,
aos meus olhos, lhes são tudo o que precisam para viver plenamente em
consonância com seus ideais? É engraçado projetar a felicidade, a própria ou a
dos demais, à nossa própria forma, de acordo com nossos próprios padrões,
olvidando-nos da individualidade; contudo, sempre que vejo alguém que não se
enquadra dentro dos meus, preestabelecidos em minha consciência ainda em minha
tenra idade de acordo com os modelos com os quais sou familiarizado, questiono-me
de maneira semelhante à feita durante meus últimos passos.
...
Continua...
Eduardo Candido Gomes
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